27.8.08

Os últimos Crioulos na zona de S.Bento











A festa de 30 anos da independência de Cabo Verde estende-se até Lisboa.

Hoje não há festa no Ta Ki Tá Lá. É a primeira vez que dona Dêdês não passa as horas antes do dia da independência de Cabo Verde encafuada na cozinha a remexer a panela da cachupa ou a moer a malagueta para o caldo de peixe. O restaurante, na Rua Poiares de São Bento, em Lisboa, está fechado para obras e só reabre em Agosto. Se não for a dona Dedês, mais ninguém se lembra de festejar o dia em que o arquipélago deixou de ser colónia portuguesa. Restam poucos crioulos a viver em São Bento. Ela foi das primeiras a chegar, em 1973, e das poucas que por ali ficou.

Até hoje nunca falhou uma festa da independência. Tirava as guitarras arrumadas em cima do guarda-roupa, convocava os músicos, afastava mesas e cadeiras e dava espaço às mornas e coladeras. “Tenho pena de não fazer nada este ano, logo quando são os 30 anos de independência do meu país”, desabafa. Por outro lado, explica, os tempos são outros “O movimento costumava ser muito maior. Tínhamos festa quase todos os dias até às seis da manhã.”

Triângulo. Isso foi na altura em que esta zona de Lisboa era a continuação das ilhas cabo-verdianas. Foi para aquele triângulo - composto pelas ruas de São Bento, Poço dos Negros e Poiares de São Bento -, que chegou a primeira vaga maciça de imigrantes de Cabo Verde, no início da década de 70. Tal como dona Dedês, fugiram da seca, atravessaram o Atlântico e atracaram no Cais de Alcântara.

Manuel Correia é dos poucos cabo-verdianos que sabe contar esta história. É dirigente do Sindicato das Indústrias Eléctricas do Sul e Ilhas (SIESI) e veio para a capital em 1969 para estudar e trabalhar. Foi na empresa J. Pimenta, na Amadora, que encontrou emprego como electricista. E foi também para esta companhia que encaminhou muitos dos cabo-verdianos recém-chegados ao país “Quando eles começaram a chegar em grande número, pensei logo numa forma de ajudá-los”. E assim nasceu a “comissão de recepção aos cabo- -verdianos”. Manuel e mais dois amigos iam à Doca de Alcântara esperá-los. Uma vez desembarcados, instalavam-se nas pensões de São Bento. Muitos foram para a J. Pimenta e outros tantos para as obras do Metropolitano de Lisboa. “Era o grande empreendimento que naquela altura expandia a linha de Alvalade para o Rossio”, recorda o sindicalista.

Em São Bento chegaram a viver cerca de 600 imigrantes de Cabo Verde, segundo as contas de Manuel Correia “Foi neste local que muitos deles começaram as suas vidas. Ali tiveram cama e as primeiras refeições.” São Bento foi, portanto, uma reprodução do quotidiano do arquipélago até meados dos anos 80.

Mais tarde, boa parte deles partiu para Holanda ou para os Estados Unidos. Outros deixaram o bairro alfacinha rumo a Amadora, Oeiras ou Portela, onde construíram os bairros clandestinos. São Bento ficou pequeno de mais quando, no início da década de oitenta, os homens de Cabo Verde conseguiram trazer as suas famílias para Lisboa.

Hoje, resta pouco desse passado. A não ser a Cachupa de António Fortes, de “nominho” Toni, “uma das primeiras casas africanas em Lisboa”, esclarece o cabo- -verdiano de São Vicente. E tem razão. No início dos anos 80, Ti Lina e dona Alda, duas mulheres de São Vicente, revolucionaram as noites de Lisboa ao abrirem as portas da sua casa a todos os conterrâneos que por lá quisessem aparecer. A notícia correu de boca em boca e o prédio nº. 73 da Rua Poço dos Negros passou a ser frequentado por todos aqueles que se deliciam com a cachupa das duas cozinheiras. Ti Lina voltou para Cabo Verde e o filho herdou o negócio. “Não é a mesma coisa porque, de há uns tempos para cá, o Bairro Alto tira–nos a clientela”, conta Fortes.

Mas, embora não seja tão frequentado como no início, o facto é que hoje a Cachupa do Toni deixou de ser património exclusivo de Cabo Verde para se transformar naquilo que gosta de chamar de um espaço “intercultural”. “Não são apenas os cabo-verdianos que cá vêm. Além de outros africanos e de portugueses, chegam aqui ingleses, alemães, italianos, espanhóis e até suíços”, explica o crioulo.

Toni diz que a sua casa do Poço dos Negros foi sendo apropriada por gente de todas as origens, mas nem reparou que esse foi também o percurso do seu bairro. Basta olhar para as coisas pequenas. Como o gengibre, a mandioca, o inhame e a batata doce misturados com a couve portuguesa, os espinafres e o bacalhau da Mercearia Central, ao fundo da Calçada do Combro. O dono da loja, António Barreiros, traz os tubérculos e os legumes do Mercado Abastecedor da Região de Lisboa porque, explica o alfacinha, quer satisfazer todos os clientes. Não é o único. Os ingredientes para cozinhar os pastéis de peixe ou o arroz de atum encontram-se em quase todas as esquinas do triângulo de São Bento.

Regresso. Àquela zona de Lisboa regressam todos os que um dia ali viveram. Seja para comer no Ta Ki Ta Lá, no restaurante Cantinho da Paz ou na Cervejaria do Chico. Seja para dançar nas discotecas africanas ou para enviar ou levantar as mercadorias que vão e vêm das ilhas, mas que passam sempre pela Agência de Viagens Cabo Verde, na Rua de Poiares de São Bento.

Hoje, dia de independência de Cabo Verde, não há festa no restaurante de dona Dedês. Mas os cabo-verdianos estarão esta noite em São Bento. Há mornas e coladeras na discoteca africana B. Leza, no Largo do Conde Barão. Há gente de São Vicente, de Santiago ou da ilha do Fogo. De Lisboa e de qualquer canto do mundo.

Kátia Catulo / Caboindex
(publicado igualmente no Diário de Noticias,
05.07.2005)


26.8.08

Pessoas e actividades na Rua Poço dos Negros, pré-Républica, c. 1900


















Festas do 1º Aniversário da Proclamação da Républica
foto de Joshua Benoliel, 1911


No arquivo on-line do
Arquivo Fotográfico Municipal da CML recolhemos algumas fotografias sobre a rua do Poço dos Negros, como algumas das que usámos anteriormente e como todas as que as aqui se seguem.
Escolhemos aquelas onde aparecem pessoas na rua e onde se entendem os vários tipos de actividade comercial que ali tinham lugar - algumas delas ainda se mantêm hoje. A maior parte destas pessoas encontra-se ali numa data incerta; o arquivo refere que as imagens foram realizadas entre 1898 e 1908 (uma bela rima enquanto período...).
Uns anos antes, ou uns anos depois, poucas alterações devem ter acontecido naquela rua. Mas uma associação surge como imediata: estas pessoas estiveram ali antes da proclamação da Républica. Algumas provavelmente voltaram lá depois da fotografia, já quando o país se estreava numa nesta nova modalidade de pensamento e organização política.
Curiosamente a Rua do Poço dos Negros teve no ano seguinte a esta estreia, uma singular forma de participar na representação desse processo político: a rua ornamentar-se-ia temporariamente em 1911 para as celebrações do primeiro aniversário da républica (o incansável Benoliel passou por lá para a fotografar).


A seguir, em baixo de cada foto, e entre parênteses, colocou-se o 'Assunto' pelo qual o Arquivo Fotográfico classifica as imagens. Estes assuntos têm graça pela sua literalidade. Ainda assim, são capazes de mostrar o que de outra forma provavelmente não consideraríamos.


















R. Poço dos Negros, 2
(Criança, Obras, Varanda, Prédio, Janela de guilhotina, Olho de boi)



















R. Poço dos Negros, 32-34
(Estabelecimento comercial, Platibanda, Água-furtada, Varanda, Placa toponímica, Prédio)




















R. Poço dos Negros, 54-64
(Homem, Água-furtada, Varanda, Azulejaria, Prédio)



















R. Poço dos Negros, 74-80
(Estabelecimento comercial, Prédio)



















R. Poço dos Negros, 128-136
(Olho de boi, Prédio, Varanda, Alfaiataria, Estabelecimento comercial)




















R. Poço dos Negros
(Platibanda, Água-furtada, Varanda, Prédio)














Cruzamento R.Poço dos Negros com R. São Bento
(Senhoras passeando perto do Palácio da Flor de Murta)














R. Poço dos Negros, Palácio da Flor da Murta
(Varanda, Água-furtada, Chaminé, Brasão, Criança, Palácio da Flor da Murta)


21.8.08

Outros inícios


Outros inícios, antes de avançarmos sobre um tempo mais recente. Os inícios desta rua, onde se encontra a sede do Cão Solteiro.

Não existe uma certeza sobre a origem da toponímia da Rua do Poço dos Negros. Numa carta régia de 1515,
D.Manuel fala da necessidade da construção de um poço para depositar os corpos dos escravos mortos, que eram muitos, sobretudo durante os surtos epidémicos. Entendia o rei que "ho milhor remedio sera fazer-se huu(m) poço, o mais fumdo que podese ser, no llugar que fose mais comvinhauel e de menos imcomvyniemte, no quall se llãçasem os ditos escravos".
Até hoje não foram encontrados vestígios que possam situar esse poço, mas sabe-se que a medida foi cumprida pela câmara na área em direcção a Santos - o local fazia sentido pois a cidade crescia e avançava para ocidente. A proximidade geográfica do Largo do Poço Novo (hoje Lg. Dr. António de Sousa de Macedo, situado na bifurcação da Calçada do Combro) vem igualmente corroborar esta hipótese.
Há no entanto uma possibilidade para o termo 'negros' menos incómoda. Este pode estar relacionado com o antigo
Convento de S. Bento (onde hoje temos o nosso Parlamento), e que era conhecido por S. Bento dos Negros, devido à cor dos hábitos dos frades. E é no Largo do Poço Novo onde existe a referida bifurcação na Calçada do Combro - para a Rua do Poço dos Negros e a Rua dos Poiais de S. Bento - por onde se chegava ao convento, e onde segundo o historiador Gustavo de Matos Sequeira, os frades negros possuíam também um poço...

Poço de uns ou de outros, o poço terá sido
mais ou menos fundo conforme as necessidades de quem o fez, a morfologia e o nível freático do terreno. A designação implícita na Rua do Poço dos Negros atesta a importância desta no processo urbanístico da cidade durante o sec. XVI que evoluía no sentido do ocidente junto à desembocadura do rio Tejo, e que seria consolidado após (e na consequência) do terramoto. Uma rua moderna, do seu tempo.













Esquina do Largo do Poço Novo com a Rua do Poço dos Negros, c. 1900


20.8.08

Início













Este blogue trata da nova criação do Cão Solteiro, desta vez em colaboração com André Guedes. Ou de André Guedes em colaboração com o Cão Solteiro.
Demos início a este projecto já em Julho e aqui continuamos em Agosto, e iremos continuar por Setembro, eventualmente Outubro.
É nossa intenção, que à semelhança dos anteriores blogues do Cão, sejam aqui colocados materiais avulsos que analisamos e partilhamos durante as nossas sessões de trabalho.

Damos início a este blogue com uma imagem de Luis Pavão realizada numa taberna da Rua do Poço dos Negros em 1979 (era sem dúvida uma Lisboa pitoresca, e ainda o é). Um freguês, uma empregada (ou proprietária), e um galo equilibrado na palma da sua mão. Não temos a certeza sobre os passos seguintes
deste galo, mas imaginamos possibilidades...
Ao que parece a Rua do Poço dos Negros era conhecida
pelas várias tabernas de gente que vinha da Galiza (cremos que nenhuma delas perdura até hoje). A primeira grande vaga de emigrantes galegos em Lisboa acontece em meados do século XVIII, após do terremoto de 1755, e continua até meados do século XX. A maioria deles realizavam o trabalho duro que os lisboetas não queriam ou não lhes apetecia fazer. "Los gallegos lisboetas eran vistos como “máquinas de sudor” que se empleaban para el transporte de todo tipo de mercancías, pero especialmente el agua, un bien escaso en la capital del Tajo." (http://www.laopinioncoruna.es/estaticos/domingo/20080203/domingo.html)