texto de Paulo Emerenciano a-propósito da reprodução das duas páginas da revista Seara Nova (número editado em Janeiro de 1972 sob a direcção de Augusto Abelaira) distribuidas durante o espectáculo
Lado a lado «inflação» e «crédito». Opostos e, ao mesmo tempo, conceitos aliados ou, talvez, dois pesos da mesma moeda: a ilusão do dinheiro, o sonho da liberdade financeira e o seu castigo. Dois extremos do equilíbrio. No meio, a ganância humana. A relação entre os dois suporta-se a um ritmo bem encadeado.
O crédito fornece o acesso ao dinheiro de muitas pessoas que não o têm. Pessoas e entidades que precisam dele para impulsionar o crescimento das suas actividades, a que chamamos, por exemplo, modernização. Quanto mais modernização e competição, maior a necessidade de dinheiro e maior é a oferta de crédito. O dinheiro em circulação cresce e com ele os preços tendem a aumentar, porque há mais dinheiro disponível para pagar os bens e há mais procura. As taxas de juro descem e facilitam o crédito. À medida que este fenómeno sucede, os preços separam-se do valor real dos bens e como progresso desta lógica de «mais dinheiro, mais compras», a especulação ganha proporções irrealistas e os preços de certos bens tornam-se absurdos, provocando a tal inflação, ou seja a disparidade entre o valor real e o preço. Cria-se uma ilusão generalizada de poder compra baseado no crédito. A sociedade extrema-se na separação entre os que têm e os que não têm. O acesso ao crédito consagra uma certa ascensão social, da qual ninguém se consegue libertar. As pessoas podem exibir-se com maior afirmação e isso torna-se um vício, expressa em tensões consumistas. Surgem os centros comerciais e o grande consumo, a massificação, a globalização. Criam-se grandes empresas, grandes carreiras e futuros promissores, tanto quanto grandes fortunas, nuns casos e miséria noutros. A democracia floresce à sombra do mercado. Os hábitos sofisticam-se e precisam de mais crédito. As roupas, os carros, as casas novas, os móveis, as férias, os electrodomésticos.
Decorre um período largo – pensemos com Kondratiev e Shumpeter em 50 anos – para partir do nada e chegar a um ponto em que a inflação é insustentável. Começa o processo inverso. Dado o nível elevado de preços e o custo de vida se tornar aflitivo, há duas situações: ou as pessoas deixam de pedir crédito ou pedem-no e ficam sobre endividadas. Em ambos os casos, o mercado fica bloqueado, porque o poder de compra pára ou decresce. As taxas de juro sobem para conter o crédito e domesticar a inflação e as empresas deixam de vender os seus produtos. O número de pessoas sem emprego aumenta. A paz social e a democracia entram em risco, em virtude do desespero. O político reage com medidas de contenção e de incentivos aos mercados, associado a uma taxa de juro que trava os excessos do próprio mercado. Se as medidas forem suficientemente absorvidas pelos mercados, a tendência começa a inverter-se e voltamos ao início do ciclo, ao início deste texto. Inversamente, os agentes do mercado não absorvem as medidas. A desconfiança dá origem ao pânico e ocorre um ciclo de decadência, a que se chama «depressão». Em depressão, não existe crédito e a inflação é tão alta que nenhum dinheiro tem valor, nem os produtos, por mais simples que sejam, têm um preço adequado, sobretudo os bens de primeira necessidade que tendem a tornar-se muito escassos. Todo o fluxo de fornecimento de bens e serviços é cortado. A violência entre as pessoas instala-se porque deixa de haver ordem pública devido ao colapso do exército e das forças policiais, também apanhadas no turbilhão. Volta-se à dureza das origens. Volta-se ao zero reinicia-se tudo outra vez. A inflação sempre presente, com a natural variação dos preços, nesta fase ainda alta e a descer, à medida que o trabalho vai dando origem a produção excedentária, os fluxos financeiros vão dando origem a um mercado que se recompõe. Na sequência disso, reemerge o crédito e todo o ciclo de relacionamento entre crédito e inflação. Restabelece-se a ordem e a democracia regressa. Inflação e crédito, mercado e democracia, tudo velhos ingredientes habituais do velho mundo capitalista e da paz social.