A festa de 30 anos da independência de Cabo Verde estende-se até Lisboa.
Hoje não há festa no Ta Ki Tá Lá. É a primeira vez que dona Dêdês não passa as horas antes do dia da independência de Cabo Verde encafuada na cozinha a remexer a panela da cachupa ou a moer a malagueta para o caldo de peixe. O restaurante, na Rua Poiares de São Bento, em Lisboa, está fechado para obras e só reabre em Agosto. Se não for a dona Dedês, mais ninguém se lembra de festejar o dia em que o arquipélago deixou de ser colónia portuguesa. Restam poucos crioulos a viver em São Bento. Ela foi das primeiras a chegar, em 1973, e das poucas que por ali ficou.
Até hoje nunca falhou uma festa da independência. Tirava as guitarras arrumadas em cima do guarda-roupa, convocava os músicos, afastava mesas e cadeiras e dava espaço às mornas e coladeras. “Tenho pena de não fazer nada este ano, logo quando são os 30 anos de independência do meu país”, desabafa. Por outro lado, explica, os tempos são outros “O movimento costumava ser muito maior. Tínhamos festa quase todos os dias até às seis da manhã.”
Triângulo. Isso foi na altura em que esta zona de Lisboa era a continuação das ilhas cabo-verdianas. Foi para aquele triângulo - composto pelas ruas de São Bento, Poço dos Negros e Poiares de São Bento -, que chegou a primeira vaga maciça de imigrantes de Cabo Verde, no início da década de 70. Tal como dona Dedês, fugiram da seca, atravessaram o Atlântico e atracaram no Cais de Alcântara.
Manuel Correia é dos poucos cabo-verdianos que sabe contar esta história. É dirigente do Sindicato das Indústrias Eléctricas do Sul e Ilhas (SIESI) e veio para a capital em 1969 para estudar e trabalhar. Foi na empresa J. Pimenta, na Amadora, que encontrou emprego como electricista. E foi também para esta companhia que encaminhou muitos dos cabo-verdianos recém-chegados ao país “Quando eles começaram a chegar em grande número, pensei logo numa forma de ajudá-los”. E assim nasceu a “comissão de recepção aos cabo- -verdianos”. Manuel e mais dois amigos iam à Doca de Alcântara esperá-los. Uma vez desembarcados, instalavam-se nas pensões de São Bento. Muitos foram para a J. Pimenta e outros tantos para as obras do Metropolitano de Lisboa. “Era o grande empreendimento que naquela altura expandia a linha de Alvalade para o Rossio”, recorda o sindicalista.
Em São Bento chegaram a viver cerca de 600 imigrantes de Cabo Verde, segundo as contas de Manuel Correia “Foi neste local que muitos deles começaram as suas vidas. Ali tiveram cama e as primeiras refeições.” São Bento foi, portanto, uma reprodução do quotidiano do arquipélago até meados dos anos 80.
Mais tarde, boa parte deles partiu para Holanda ou para os Estados Unidos. Outros deixaram o bairro alfacinha rumo a Amadora, Oeiras ou Portela, onde construíram os bairros clandestinos. São Bento ficou pequeno de mais quando, no início da década de oitenta, os homens de Cabo Verde conseguiram trazer as suas famílias para Lisboa.
Hoje, resta pouco desse passado. A não ser a Cachupa de António Fortes, de “nominho” Toni, “uma das primeiras casas africanas em Lisboa”, esclarece o cabo- -verdiano de São Vicente. E tem razão. No início dos anos 80, Ti Lina e dona Alda, duas mulheres de São Vicente, revolucionaram as noites de Lisboa ao abrirem as portas da sua casa a todos os conterrâneos que por lá quisessem aparecer. A notícia correu de boca em boca e o prédio nº. 73 da Rua Poço dos Negros passou a ser frequentado por todos aqueles que se deliciam com a cachupa das duas cozinheiras. Ti Lina voltou para Cabo Verde e o filho herdou o negócio. “Não é a mesma coisa porque, de há uns tempos para cá, o Bairro Alto tira–nos a clientela”, conta Fortes.
Mas, embora não seja tão frequentado como no início, o facto é que hoje a Cachupa do Toni deixou de ser património exclusivo de Cabo Verde para se transformar naquilo que gosta de chamar de um espaço “intercultural”. “Não são apenas os cabo-verdianos que cá vêm. Além de outros africanos e de portugueses, chegam aqui ingleses, alemães, italianos, espanhóis e até suíços”, explica o crioulo.
Toni diz que a sua casa do Poço dos Negros foi sendo apropriada por gente de todas as origens, mas nem reparou que esse foi também o percurso do seu bairro. Basta olhar para as coisas pequenas. Como o gengibre, a mandioca, o inhame e a batata doce misturados com a couve portuguesa, os espinafres e o bacalhau da Mercearia Central, ao fundo da Calçada do Combro. O dono da loja, António Barreiros, traz os tubérculos e os legumes do Mercado Abastecedor da Região de Lisboa porque, explica o alfacinha, quer satisfazer todos os clientes. Não é o único. Os ingredientes para cozinhar os pastéis de peixe ou o arroz de atum encontram-se em quase todas as esquinas do triângulo de São Bento.
Regresso. Àquela zona de Lisboa regressam todos os que um dia ali viveram. Seja para comer no Ta Ki Ta Lá, no restaurante Cantinho da Paz ou na Cervejaria do Chico. Seja para dançar nas discotecas africanas ou para enviar ou levantar as mercadorias que vão e vêm das ilhas, mas que passam sempre pela Agência de Viagens Cabo Verde, na Rua de Poiares de São Bento.
Hoje, dia de independência de Cabo Verde, não há festa no restaurante de dona Dedês. Mas os cabo-verdianos estarão esta noite em São Bento. Há mornas e coladeras na discoteca africana B. Leza, no Largo do Conde Barão. Há gente de São Vicente, de Santiago ou da ilha do Fogo. De Lisboa e de qualquer canto do mundo.
Kátia Catulo / Caboindex
(publicado igualmente no Diário de Noticias, 05.07.2005)